Falhas no sistema do Auxílio Emergencial
A rede de mulheres Parto do Princípio protocolou uma denúncia sobre as falhas no sistema que libera o Auxílio Emergencial
Nós da Rede de Mulheres Parto do Princípio protocolamos neste dia 13 de maio de 2020 uma denúncia sobre falhas no Sistema do Auxílio Emergencial.
Estamos exigindo somente o mínimo: queremos que sejam tomadas medidas imediatas do poder público para que as mulheres que atendem aos critérios estabelecidos tenham acesso ao Auxílio Emergencial sem demora.
Segue a lista de falhas do Sistema que necessitam de correção imediata:
Impossibilidade de solicitar o benefício devido ao Cadastro Único desatualizado
Muitas mulheres que hoje atendem aos critérios para recebimento do auxílio emergencial não o estão recebendo porque os dados do Cadastro Único estão desatualizados. Em muitos casos, as situações financeiras, familiares e de moradia se alteraram com a pandemia, porém, tais modificações não constam do Cadastro Único porque os equipamentos públicos de assistência social responsáveis pelo Cadastro Único estão com as atividades suspensas. É inaceitável que a dificuldade em atualizar o Cadastro Único durante a pandemia seja um impeditivo para acessar o Auxílio Emergencial.
Impossibilidade de cadastrar CPF de descendentes
Muitas mulheres que são chefes de família não conseguem cadastrar o CPF de filhas e filhos, mesmo sendo responsáveis pelo seu cuidado e sustento. Em muitos casos, o sistema informa que o CPF de seus descendentes já está vinculado a outro núcleo familiar. (resposta do aplicativo: "Os CPFs já estão vinculados a outro núcleo familiar.")
Desistência de cadastrar CPF de descendentes
Devido à situação descrita anteriormente, muitas mulheres desistem de incluir o CPF de filhas e filhos, e assim abrem mão do benefício dobrado a que fazem jus, para garantir que ao menos receberão rapidamente o valor de R$ 600,00.
Análise incorreta do critério de empregabilidade
A Lei Federal 13.982/2020 define que está apta a receber o Auxílio Emergencial a pessoa que não tem emprego formal ativo (inciso II do art. 2º). No entanto, a Portaria do Ministério da Cidadania nº 351, de 7 de abril de 2020, diz que, para receber o auxílio, a pessoa não deve ter tido vínculo ativo ou renda nos últimos três meses (inciso II do art. 3º). Ora, se o Auxílio Emergencial foi instituído justamente para socorrer as pessoas que perderam seus rendimentos em decorrência da pandemia, o que importa é que no momento do pedido do benefício ela cumpra os requisitos definidos na lei. A referida Portaria do Ministério da Cidadania constitui, portanto, uma medida administrativa flagrantemente ilegal.
Peregrinação em busca de solução
As mulheres enfrentam barreiras das mais diversas quando buscam solucionar os problemas de cadastro e análise de seu pedido. Elas não sabem a quais instituições recorrer e, na maioria das vezes, precisam deixar seus filhos sob cuidados de outras pessoas (quando isso é possível) e suportar o deslocamento e o longo tempo de espera, sujeitas a contrair o Sars-CoV-2, enfrentando aglomerações. Isso tudo sem saber se conseguirão atendimento, muito menos se esse será resolutivo e rápido. Além disso, o aplicativo “Caixa Tem” gera um código de acesso a saque com validade de 1 hora, o que muitas vezes não atende às necessidades das pessoas. Há relatos de distribuição de senhas físicas nas agências, as quais se esgotariam nas primeiras horas da manhã, ou ainda de restrição de horário para atendimento de questões ligadas ao benefício. As longas filas nas agências da Caixa Econômica Federal têm sido o destino da maioria das mulheres que buscam informações e encaminhamentos. A maioria desconhece a existência e atuação de órgãos como Ministério Público, Juizados e Defensorias. É uma peregrinação humilhante em busca da efetivação de um direito, além de exposição desnecessária da mulher e de sua família à COVID-19, que coloca por terra todas as medidas de prevenção que porventura as autoridades sanitárias tenham tomado.
Agravamento de violências
Além do aumento da violência doméstica já documentado na grande mídia, muitas mulheres estão sofrendo violências morais e físicas por questionarem o genitor de seus filhos pelo uso indevido do CPF dos descendentes. Esses homens cadastram o CPF de seus filhos e filhas, com quem não coabitam, para diminuir a sua renda per capita (uma maneira de fraudar o sistema), ou mesmo para prejudicar a mulher, em uma atitude misógina que coloca em risco a dignidade, a subsistência e o direito à vida de seus próprios descendentes, ainda menores de idade; ou ainda por engano, já que a pergunta do aplicativo induz ao erro (pergunta das versões iniciais do aplicativo: “Composição familiar: Precisamos dos dados de todos os membros da sua família”). Como se isso não fosse suficiente, muitos genitores estão deixando de pagar a pensão alimentícia sob o argumento de que a mulher receberá o auxílio emergencial em valor dobrado, e portanto eles estariam dispensados de cumprir com essa obrigação.
Entendemos, assim, que os problemas na concessão do auxílio emergencial são de três ordens:
Erros conceituais a respeito de quem são as pessoas elegíveis ao Auxílio Emergencial e de como operacionalizar os conceitos e variáveis nos meios usados para solicitação do benefício. Se o requisito expresso na Lei nº 13.982/2020 é não ter emprego formal ativo, pode-se considerar como ilegal a Portaria nº 351/2020 do Ministério da Cidadania, que estipula o critério de não ter vínculo empregatício ou renda nos últimos 3 meses para que a pessoa tenha acesso ao Auxílio Emergencial. Não ter renda ou vínculo empregatício hoje e não ser beneficiário de qualquer tipo de auxílio hoje deveriam ser os critérios de elegibilidade para acessar o benefício, de modo a não sucumbir à privação financeira decorrente da pandemia de Covid-19.
Erros e inconsistências entre normas legais e infralegais, sites e aplicativos na definição de critérios de elegibilidade ao benefício. Assim, por exemplo, a Lei nº 13.982/2020 coloca que o auxílio emergencial será concedido ao trabalhador, e que a “mulher provedora de família monoparental” receberá duas cotas do auxílio, ao passo que a Portaria nº 351/2020 do Ministério da Cidadania estabelece que “no caso de família monoparental com mulher provedora, a família fará jus” a duas ou três cotas, a depender da existência de outros componentes na família e de sua elegibilidade ao benefício. Já no aplicativo para solicitação do benefício, exibe-se uma caixa de seleção com os dizeres “Caso seja mulher e chefe de família, única responsável pelo sustento de todos os membros, marque esta opção”. A primeira confusão se dá a respeito do beneficiário do auxílio (se a pessoa trabalhadora ou a família), e a seguir sobre a posição da mulher na família: a provedora de família monoparental pode não ser a única responsável pelo sustento de todos os membros da família e ainda assim encontrar-se em uma situação de extrema vulnerabilidade. Pode-se tomar um exemplo hipotético de uma mulher que tem três filhos menores de idade, abrigando ainda em sua moradia sua mãe idosa, que eventualmente realizava “bicos” antes da pandemia: conforme a lei, a mulher teria direito a duas cotas; de acordo com a Portaria, o conjunto da família teria direito a três cotas; por fim, pelo aplicativo, a mulher teria direito a uma cota. Outro problema refere-se à própria definição de família, uma vez que a Lei nº 13.982/2020 estabelece que “o recebimento está limitado a dois membros da mesma família”: seria necessário esclarecer como devem proceder as famílias conviventes em um mesmo domicílio. Como exemplo, pode-se mencionar uma mulher que tem três filhos menores de idade e que abrigue em sua moradia sua mãe idosa e ainda uma irmã maior de idade, com filhos menores de idade. De acordo com critérios utilizados pelo IBGE no Censo Demográfico 2010, essas pessoas conformam duas famílias conviventes, de modo que a família principal (mulher + três filhos + mãe idosa) teria direito a três cotas e a família composta pela outra mulher e seus filhos teria direito a mais duas cotas. Todavia, as pessoas em condição semelhante podem deixar de acessar o benefício, pela falta de esclarecimento a respeito da definição de família. Cabe ressaltar que os termos domicílio, família, família monoparental, responsável pela família, provedor se referem a conceitos distintos e que não podem se confundir ou se intercambiar nos documentos, sites e aplicativos relacionados à concessão do Auxílio Emergencial, sob pena de distorcer os critérios de elegibilidade ao benefício.
Erros de sistema, incluindo tanto as funcionalidades de site e aplicativo como também o processamento dos dados coletados e a capacidade de atender aos acessos simultâneos. Constituem exemplos desse tipo de erro: a desconsideração do zero no início de número de CPF e o tratamento incoerente do CPF nos dados informados por mulheres e homens sobre seus filhos. Nas primeiras versões do site/aplicativo, o enunciado era: “Composição familiar: Precisamos dos dados de todos os membros da sua família”, de modo que os filhos poderiam ser informados tanto pelo pai como pela mãe, independentemente de residirem com um ou outro (no caso de pais não conviventes em um mesmo domicílio) ou com ambos. Assim, a duplicidade da informação do CPF desses filhos deveria ser esperada. Todavia, há diversos relatos de mulheres que não conseguiram incluir seus filhos no cadastro, recebendo como mensagem “O CPF já está vinculado a outro núcleo familiar”. Outro erro é o indicativo de cadastro em duplicidade quando a primeira tentativa não é concluída, impedindo o preenchimento correto dos campos de dependentes nas tentativas posteriores. Esse erro é um tipo de erro previsto em sistemas que utilizam bancos de dados, porém não foi previsto neste caso e não há informações de fácil acesso sobre como resolver os problemas gerados por esse erro.
Usabilidade do aplicativo, contemplando a interface com as usuárias e a linguagem utilizada nas questões e opções de resposta, como também sua estabilidade. Alguns exemplos compreendem: ausência de informações sobre como lidar com os possíveis erros no aplicativo de cadastro; solicitações recusadas sem indicação de motivo e solicitações recusadas com motivos questionáveis sem indicação de como recorrer. Jáo aplicativo Caixa Tem, que permanece instável, gera um código para saque que expira em uma hora, tempo insuficiente para efetivação do saque, mesmo que a pessoa já esteja na fila. A estrutura prevista para o fluxo de acessos é demasiadamente inferior à demanda real. Para conseguir a emissão da senha, as pessoas relatam que é necessário tentar diversas vezes em horários de menor fluxo (madrugada). Essas pessoas seguiram para o caixa eletrônico sacar, enfrentaram fila, mas a senha tem validade de apenas 1 hora após sua emissão.
É urgente agir para proteger a vida e a sobrevivência digna de milhões de mulheres pelo país afora, bem como de seus filhos. Como medidas imediatas, solicitamos:
-
Correção do formulário de forma que a mãe consiga inserir os CPFs das crianças independentemente de outra pessoa já ter inserido esses CPFs. Caso a mulher, provedora de família monoparental, cadastre o CPF de um descendente já cadastrado por um homem, o cadastro da mulher deve ser priorizado.
-
Inclusão de opção para revisão dos cadastros pelas(os) solicitantes. Isso permite, por exemplo, que mulheres que têm direito a duas cotas e abriram mão de uma delas por não conseguirem cadastrar o CPF de seus filhos na primeira tentativa corrijam seu cadastro.
-
Definição de prazo máximo de análise dos cadastros, de depósito do dinheiro em conta e liberação do código de acesso. A imensa demora nesses processos está agravando ainda mais a situação de vulnerabilidade a que as famílias estão submetidas, descaracterizando os objetivos do Auxílio Emergencial.
-
Inclusão de opção de reportar erros pelo próprio site ou aplicativo, com número de protocolo e resposta para a usuária em até 24 horas; Inclusive para os casos em que o “Caixa Tem” não funciona ou quando o auxílio foi aprovado, mas o dinheiro não foi creditado na conta bancária informada.
-
Os inscritos no Cadastro Único que estão com seus dados desatualizados e que não foram considerados para o recebimento do Auxílio Emergencial devem ter o acesso ao benefício garantido, com a liberação de seus CPFs para solicitação e recebimento do Auxílio Emergencial via site e aplicativo da Caixa.
-
Reedição do inciso II do art. 3º da Portaria 351, de 7 de abril de 2020, retirando a limitação de existência de vínculo ou renda nos últimos 3 meses. A inexistência de vínculo ou renda deve se referir ao mês atual.
-
Divulgação ampla de todos os problemas e dificuldades que as pessoas podem encontrar em todo o processo de solicitação do auxílio, informando como e em qual órgão cada problema pode ser solucionado, com seus horários de atendimento.
-
Dar publicidade a quais as competências da Caixa Econômica Federal a fim de que as pessoas não se desloquem inutilmente para uma agência bancária para resolver uma questão que somente poderá ser tratada em outra instância.
-
Assim que houver previsão de ajustes e correções nos sites e aplicativos relacionados à solicitação e ao pagamento do Auxílio Emergencial, estes devem ser amplamente divulgados. Isso inclui informar diretamente as pessoas afetadas para que elas saibam como proceder a fim de evitar a peregrinação.
-
Transparência das informações, com divulgação semanal de dados estratificados do número de solicitações, por estado da solicitação (aprovado, em análise, inconclusivo, reprovado), sexo, faixa etária, raça/cor, se a solicitante se declara mulher provedora de família monoparental, região/estado, e motivo da recusa e inconclusão.
-
Divulgação semanal do número total de contas digitais criadas automaticamente, do número total de auxílios depositados nestas e nas outras contas informadas nos cadastros (por banco), o número total de cota dupla de auxílios creditados para mulheres provedoras de família monoparental, número de contas que já foram acessadas e o número de contas que já foram movimentadas.
-
Transparência das ações com divulgação semanal do relatório de erros, das ações, alterações de sistema, números de casos em atraso e demais problemas relatados pelos usuários, comunicações de erros, número de solicitações/comunicações respondidas e o tempo transcorrido para a resposta.
Outras medidas mais se fazem necessárias para superar os vários empecilhos no sistema a fim de garantir o acesso pleno ao Auxílio Emergencial por todas aquelas pessoas que atendem aos critérios estabelecidos.
Acesse a íntegra do documento da denúncia:
Parto do Princípio - Auxílio Emergencial Denúncia.pdf
Clique aqui para ver a resposta da Defensoria Pública da União da Paraíba
Clique aqui para ver o documento da Ação Civil Pública movida pelo MPF do Rio de Janeiro
Veja também: